“Sou trabalhador, eu. Tenho nada com isso, não”; por Roger Normando

“Reparte com os Urubus
o lixo nosso de cada dia”
Zé Miguel/Joãozinho Gomes, músicos.

 Tudo começou há quatro anos. Não conheci a mãe. Seu pai era líder comunitário achegado a políticos fortes. Ele adentrou pela emergência daquele hospital por ter sido alvejado de balas pela polícia. Uma atingiu a raiz do pulmão direito deixando-o grave, pálido, agônico. Ainda consciente insistia na inocência: “sou trabalhador, eu. Tenho nada com isso, não”. Para mantê-lo vivo demos um talho no tórax e rapidamente retiramos o pulmão pela tática designada pelos gringos como “Damage control” (operação-CTI-operação novamente e CTI no final, se sobrevivesse).
Sobreviveu. O brônquio, um pouco longo, teve que ser re-amputado na segunda operação. Informamos ao Pai. Ele não perdeu tempo. Escafedeu-se. Não foi para culto ou missa, orar, e sim direto ao canal de televisão: “erro médico: cirurgião opera e deixa resto de pulmão no interior do tórax de inocente cravejado de bala pela polícia”.
Àquela altura duas laias: cirurgiões e policiais. Teríamos pela frente, ainda: assistência diária, telefonemas de vizinho e vontade de sumir. Ele fugiu primeiro, com dreno e tudo.
Adquirira infecção e voltou. Não conseguiu internar em outro hospital, exceto no Barros Barreto, pois o pus se pusera a escorrer pela operação. Ninguém queria atendê-lo. Fui por imposição da diretoria. Convoquei o Pai para um dedo de prosa na venta e explicar que estava ali por obrigação e desgosto. Não havia jeito, eles tiveram de aceitar. Eu também. Com o tempo a relação amoleceu.
Obteve alta ainda com o tubo após algumas semanas, à custa de antibióticos, curativos e visitas com pouca figa. Disse-lhe antes de ir que a única solução definitiva para viver sem aquele tubo no peito seria arriscar a toracoplastia, operação com chances de transfusão sanguinea e fracasso. Ele refugou. Saiu pra vida com tubo e tudo. Desfiz a figa.
Após dois anos, entre idas e vindas às consultas, o outro pulmão esticou, ficou curado do pus e livre do dreno. Milagre, sim. O deus dele batia o martelo da justiça.
Certa vez vi-o convocando passageiros numa van na Almirante Barroso. Sorri enfim e apesar. Ele alardeava: “40 hora, 40 hora. Quem vai?”. E eu a flertar aquele trabalhador sem que ele me percebesse. Estava forte e tinha fôlego de sobra para um só pulmão. Um final feliz, diria-se…
Até que nesta semana, numa das consultas, estava novamente ele: algemado e sem o pai. O policial que o acompanhava se espantou ao perceber que éramos velhos conhecidos.
– “Dotô: eu sou trabalhador, eu. Tenho nada com isso, não. O meu peito é que dói por causa das duas operações que o senhor fez e daquela mangueira grossa que vocês colocaram em mim”.

Texto da série A VIDA VALE UM CONTO DIANTE DA MORTE QUE ARRODEIA.
O colaborador, professor Roger Normando, é cirurgião torácico.

Sobre o Projeto Laboratório Virtual - FAU ITEC UFPA

Ações integradas de ensino, pesquisa e extensão da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Tecnologia da Universidade Federal do Pará - em atividade desde maio de 2010. Prêmio Prática Inovadora em Gestão Universitária da UFPA em 2012. Corpo editorial responsável pelas publicações: Aristoteles Guilliod, Fernando Marques, Haroldo Baleixe, Igor Pacheco, Jô Bassalo e Márcio Barata. Coordenação do projeto e redação: Haroldo Baleixe.
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