Zélia Amador de Deus merece uma canção, pois é irmã e amiga e, como não sei cantar, lembrei do poeta maior Milton Nascimento que diz: Amigo[a] é coisa para se guardar / No lado esquerdo do peito / Mesmo que o tempo e a distância digam “não” / Mesmo esquecendo a canção / O que importa é ouvir / A voz que vem do coração¹
Chamar o coração é o que tento fazer, agora, para homenagear a negra, a mulher, filha de Dora e neta de Chica, de tão boa memória, nascida no Marajó e companheira de muitas refregas. Luz maior na constelação da Universidade Federal do Pará.
A trajetória de Zélia é agenciada pela tenacidade e muitas são as conquistas, algumas delas inesquecíveis para indígenas e quilombolas, pois participou da elaboração do Programa de Ações Afirmativas da UFPA; da redação do manifesto Pró-Estatuto de Igualdade Racial; foi delegada da Conferência Mundial contra o Racismo, exatamente por ter, com alguns outros(as) bravos(as) militantes negros(as) criado o Centro de Estudos e Defesa do Negro no Pará (CEDENPA), referência do movimento negro no Pará, demonstrando competência impar para a articulação política.
Entretanto, nem tudo são flores!
A trajetória da homenageada é marcada pelos percalços a que são submetidas as negras mulheres na Amazônia, alvo que são de discriminações de raça, gênero, classe e lugar de pertença.
Muitas são as nuances da vida da homenageada Zélia que poderiam ser apontadas, especialmente, por ela ser uma profissional multifacetada: atriz, que enfrentou a censura da ditadura; teatróloga responsável pela vinda de Amir Haddad à Belém para “realização” do Auto do Círio – Teatro de Rua – que é hoje, a cena profana maior na louvação à Nossa Senhora de Nazaré quando, a cada ano, chega outubro.²
Como docente que, nesta casa, chegou à direção do Centro de Letras e Artes e a Vice-Reitoria, mesmo que os opositores bradassem: vote em branco! O racismo recrudesce em momentos de disputa, não pensem que neste caso o pedido era apenas não votar, a conotação ambígua referia-se à Zélia e foi escrita, com letras identificáveis, nos quadros das salas de aula da Instituição. Ela agenciou a vitória e fez excelente administração política! Pensei, com meus botões, vencemos o racismo, encerrou… qual nada!
Concorrendo à Vice-Reitora, anos depois, foi uma vez mais alvo de racismo, dessa vez identificada como Chita (a macaca) que acompanhava, não a Jane ou o Tarzan, mas o Lampião, pois o candidato a Reitor era de pertença nordestina e Zélia negra. O fato causou indignação, lembro da atitude racista, como se fosse hoje!
Quem viveu o evento, lembra com horror que o espaço da Universidade comporte atitudes do gênero. Conto para não perder o ritmo da canção e para que a dimensão da homenagem seja, também, uma ação contra o racismo que fere a ferro e a fogo, como no passado escravista.
Homenagear Zélia é levantar a bandeira da liberdade de tornar a inscrição constitucional, referente ao Brasil como espaço social multiétnico, plural e democrático “letra ativa”!
Para tanto, as ações afirmativas visando a cidadania e a inclusão étnico-raciais que ocupam parte da militância de Zélia, e que é tema do COPENE, transformem a homenageada Amador, em Deus[a] Negra acessível e real como amiga, irmã e cidadã de fé. Assim poderemos juntos recitar: Decepar a cana, [eliminando o racismo]; Recolher a garapa da cana, [colhendo os frutos do pluralismo]; Roubar da cana a doçura do mel, [para derramá-lo sobre os raivosos para … quem sabe? Adoçá-los!]; Se lambuzar de mel,³ [transformando a utopia em realidade]; como canta o negro que, de Nascimento, é Milton. Para juntos das Gerais à Amazônia saudarmos a Zélia desejando que o Cio da Terra seja, eterno Axé!
Santa Maria do Grão Pará, 29 de julho do ano da graça de 2014.
Jane Felipe Beltrão
¹Cf. Nascimento, Milton. Canção da América. Disponível em: http://letras.mus.br/milton-nascimento/27700/. Acesso em: 28 de julho de 2014.
²Para conhecer um pouco mais sobre a homenageada, consultar: http://raoninfo.blogspot.com/2008/10/especial-homenagem-uma-guerreira.html.
³Cf. Nascimento, Milton. Cio da Terra. Disponível em: http://letras.mus.br/milton-nascimento/27700/. Acesso em: 28 de julho de 2014.
Como colega e amigo de Zélia por ela tenha profunda estima.
Esta mulher é viva e inteligente e nunca precisou de cotas eleitoreiras para chegar onde chegou.
Tenho com carinho e muito orgulho esta figura ímpar no meu coração.