Em 1979, enquanto Leon Hirszman (1937-1987) escreve com Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) o roteiro do filme Eles não Usam Black-Tie (1981), ocorre a primeira greve geral após a implantação do AI-5 pelo regime militar. Na região do ABC paulista, no 13 de março, véspera da posse do general Figueiredo à presidência, e cerca de 180 mil operários cruzam os braços e interrompem a produção metalúrgica: conduzidos pelo sindicato, cuja liderança central é naquele momento exercida por Luís Inácio Lula da Silva, reivindicam, principalmente, um ajuste salarial maior do que aquele proposto pelos órgãos oficiais do governo e das indústrias. Tendo em vista o projeto em que estava envolvido e percebendo a importância de um movimento grevista forte o suficiente para se opor aos militares no poder, Hirszman decide interromper os trabalhos preparatórios de Black-Tie para se engajar no registro cinematográfico da greve metalúrgica. Às pressas, monta uma pequena equipe, formada por Adrian Cooper, Uli Bruhn, Francisco Mou, Cláudio Kahns (1951) e Ivan Novais, que trabalha com ele em sistema de cooperativa: para viabilizar o documentário, cada um deles abdica de uma parte do salário e empresta equipamentos para a produção, adquirindo em troca uma parcela dos direitos de comercialização do filme.
Em entrevista concedida no dia 3 de abril de 1979, publicada apenas em 1990 com o título O Espião de Deus¹, Hirszman explica que a realização do documentário, além de ajudar na composição dos personagens e situações de Eles não Usam Black-Tie, tem por objetivo principal servir à causa dos grevistas que, em sua opinião, adquiriam naquele momento consciência inédita de sua força política. O realizador procura integrar-se ao próprio processo de mobilização política, desejando que seu documentário, posteriormente chamado de ABC da Greve, mobilize o debate público durante o período, momento em que está em pauta a luta pela abertura democrática. Como sugere o diretor durante a entrevista, seu registro dos acontecimentos na região do ABC, apresentando a mobilização dos operários, deveria oferecer ao espectador a imagem – censurada pela televisão e pelos órgão de repressão – de uma classe que se organiza por seus direitos e exerce oposição à ditadura. Um filme, em suas palavra, para “recolher a memória das coisas que desconhecíamos (…) [Para sair ] da casca do medo. [De] toda essa couraça que impedia que desabrochasse a consciência do real, do que se passa de fato no país”.
Infelizmente, embora desejasse inserir ABC da Greve nos debates contemporâneos à mobilização dos metalúrgicos, Hirszman não consegue terminar o filme antes de sua morte prematura, em 1987. Pelo envolvimento em dois projetos ambiciosos – a adaptação cinematográfica de Black-Tie e Imagens do Inconsciente (1987) – e pelas dificuldades encontradas em conseguir financiamento para a transformação de ABC da Greve em uma produção de circulação nacional, processo que implicaria no alto custo de ampliar a película de 16mm para 35mm, o cineasta acaba por deixar o documentário inacabado na produtora Taba Filmes. Entre 1989 e 1990, seguindo as indicações deixadas por Hirszman e retomando a edição que iniciara há alguns anos, o fotógrafo Adrian Cooper conclui o projeto com o apoio da Cinemateca Brasileira. Lançado em 1991, na própria Cinemateca, o filme, que não é exibido no circuito comercial de salas de cinema, se transforma em importante registro de um passado recente, e vem à tona em um momento no qual o “novo sindicalismo” adquire projeção nacional com o Partido dos Trabalhadores (PT) e a primeira disputa de Lula à presidência.
O documentário segue a ordem cronológica das negociações entre operários e patrões do ABC paulista no decorrer dos meses de março, abril e maio de 1979. São utilizadas técnicas do cinema direto, com uma câmera a observar a mobilização dos trabalhadores sem intervir na cena, ou entrevistas como forma de recolher as opiniões dos diferentes agentes sociais envolvidos na greve. O filme reconta integralmente o episódio histórico, detalhando a organização do operariado: os piquetes nos pontos de ônibus, a distribuição de alimentos para as famílias dos grevistas, o apoio recebido por artistas, as reuniões no sindicato e os encontros dos dirigentes sindicais com os operários no estádio da Vila Euclides.
Para além do movimento político em ascensão, o documentário também registra as reações, naquele contexto, dos representantes oficiais dos patrões e do governo militar, como é o caso da ação repressiva da polícia militar ou da decisão do Ministro do Trabalho, Murilo Macedo, que no dia 23 de março intervém no Sindicato dos Metalúrgicos expulsando a diretoria responsável pelo comando da greve. Com destaque para a atuação dos líderes trabalhistas, principalmente Lula, o filme recupera os principais embates entre as partes envolvidas e vai até o desfecho das negociações em 13 de maio, quando os grevistas voltam ao trabalho após aceitarem um reajuste salarial de 63%. A aparente derrota do movimento por um reajuste de 70% é, no entanto, encarada como vitória em ABC da Greve: nos minutos finais, a voz em off (feita por Ferreira Gullar) informa que o governo, em decorrência dos acontecimentos, se viu forçado a recuar em relação à “Lei da Greve” de 1964, a qual impunha fortes restrições ao livre exercício da atividade sindical. Ao som da música Pode Guardar as Panelas, de Paulinho da Viola (1942), o filme termina com a sensação de que a luta dos trabalhadores estava apenas começando.
Ao optar por uma montagem que se estrutura no confronto, Adrian Cooper segue a sugestão deixada por Hirszman em entrevista concedida a Alex Viany (1918-1992) em 19832. Segundo ele, ABC da Greve deveria mostrar criticamente “três rios simultâneos”: os trabalhadores, os empresários e o regime militar. O primeiro deles, os trabalhadores, é apresentado na versão final não apenas como força política. Como autocrítica, questionando em 1979 a postura do artista politizado que representa o popular sem conhecê-lo concretamente, Hirszman faz de seu documentário uma possibilidade de participar diretamente no movimento grevista e na luta cotidiana da classe proletária3. Assim, buscando a proximidade com o povo como necessária para atualizar seu próprio engajamento, o cineasta vai além das filmagens da greve para se deter, em alguns momentos, na condição miserável dos moradores de uma favela.
Fazer do cinema a denúncia da situação vigente é uma constante na montagem que ABC da Greve reserva aos outros dois rios, os empresários e o regime militar. À certa altura do documentário, representantes da classe patronal anunciam, em entrevistas para a televisão, o esvaziamento da greve. Para desmenti-los, a montagem recorre à narração e às imagens de centenas de trabalhadores mobilizados, que comprovam a sua força política ao romperem com a proibição, imposta pelo governo, de utilizar o estádio da Vila Euclides como espaço para o encontro do sindicato com os operários. Torna-se recorrente esta estratégia de contrapor o discurso da elite no poder às ações da classe popular mobilizada, em um desmonte das “verdades” anunciadas pela televisão.
O filme faz ainda um comentário sobre a possível aliança entre vários setores da esquerda, motivo de entusiasmo de Hirszman em ver trabalhadores, artistas e organizações engajadas da igreja católica unidos contra a ditadura militar e pelo sucesso do movimento operário. União que o filme faz questão de gravitar em torno de Lula, liderança cujo carisma, posto à prova quando precisa convencer os trabalhadores a interromper a greve, perpassa toda a montagem de ABC da Greve.
Notas
1. CINEMATECA Brasileira. O espião de Deus. IN. Leon Hirszman: ABC da greve, documentário inédito. Catálogo. Cinemateca Brasileira: São Paulo, 1991.
2. VIANY, Alex. Leon Hirszman. AVELLAR, Jose Carlo (org.). O processo do cinema novo. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999, p. 283-314.
3. Na entrevista intitulada “O espião de Deus”, Hirszman declara: “A vivência perto do povo foi uma experiência riquíssima para mim enquanto diretor de cinema. Passei a compreender uma série de coisas, (…) não há nada que enriqueça mais do que a vivência de uma greve real. Vale mais do que cem dias de pensamento concentrado em qualquer monastério do saber”.
Fonte do texto: Enciclopédia Itaú Cultural.