BRASIL MARAJOARA – A MODERNIDADE DAS ARTES DECORATIVAS

Manoel Pastana
Desenho: aparelho para café, chá e leite.
Motivo: fruta-pão (folha e fruto) e sáurios.

O desenvolvimento das artes decorativas no modernismo segue algumas das marcas políticas do período. Se o modernismo no Brasil inclui o desenvolvimento de um projeto nacionalista no plano da cultura, também as artes decorativas se engajaram nesta formulação de uma identidade do país.
Antecedentes. Muito se fala da incorporação de valores plásticos nativos no barroco da América espanhola. Frequentemente elementos decorativos eram uma adaptação de elementos do vernáculo à gramática européia do estilo. Noutros casos, também significava um processo de adaptação e de sobrevivência da cultura local frente às constrições impostas pelo colonizador. É o caso, por exemplo, de algumas representações da Trindade no México, algumas submetidas à inquisição. No Brasil, o mobiliário experimentaria, no século XIX, o processo de incorporação de elementos nacionalistas, como a flora tropical na decoração. No Rio de Janeiro, na virada do século, deve ser mencionado o papel de Eliseu Visconti na formulação do moderno design brasileiro, com seus projetos de tecido e de papel de parede ou os seus vasos e xícaras. Neles, freqüentemente, Visconti aplicou ordens de decoração inspiradas na flora tropical, como o maracujá.
A produção de Theodoro Braga confere densidade ao universo modernista das artes decorativas onde predominavam em São Paulo, John Graz, Regina Gomide ou Antonio Gomide. Alguns vasos em terracota, atribuídos à fase inicial de Theodoro Braga, são incrustados na borda com série de animais, como os besouros num vaso e os jacarés noutro. O tratamento meticulosamente realista, aliado a um caráter mais simbolista, apontam ainda para um momento pré-modernista de Braga. Daí Theodoro Braga partiria para uma obra de nacionalismo mais elaborado, pautado na herança nativa. Para Quirino Campofiorito e Manuel Pastana, Theodoro Braga teria sido o grande iniciador do movimento de ação dos padrões marajoaras.
A seção de Arte Aplicada do Salão Nacional de Belas Artes de 1927, no Rio de Janeiro, apresentou um núcleo de objetos decorativos e utilitários com caráter amazônico do casal Theodoro e Maria Braga. De Maria Braga foi apresentado uma bolsa em couro, ornamentada em baixo relevo com “motivos decorativos de desenhos dos vasos indígenas Paraoaras” e uma almofada em couro, baseada no estilo da cerâmica do Marajó (1). Sem o refinamento da obra de Theodoro Braga, esses objetos, especialmente a almofada, aparentam ser decorados com uma mera transposição quase arbitrária do desenho, sem uma relação estrutural mais complexa com a forma, a função e os materiais. A almofada e a bolsa receberam nas suas bordas um acabamento em franjas, mais pertinente ao vocabulário estético dos Nativos da América do Norte. São, talvez, muito mais reveladores da indigência estética média, predominante das artes aplicadas no Brasil, que freqüentemente beirava as prendas domésticas sem invenção, Theodoro Braga também apresenta uma estranha combinação, num modelo de tapete, reunindo o brasão de São Paulo e uma cercadura oval com decoração em estilo marajoara.
No ano de 1927, Theodoro Braga apresenta dois vasos executados por Domenico Busnelli. Foi utilizado o guatambu (2), uma madeira bastante resistente. São “composiçoes sobre motivos indígenas brasileiros, decorações marajoaras”. A peça mais complexa e que aparenta ter atingido o melhor resultado gráfico, além do refinamento do desenho, parece ser o chale em seda nacional, executado em batik por Domenico Busnelli, com minuciosa estilização marajoara. A concepção desse objeto baseia-se na articulação de ritmos visuais. Um intrincado desenho, acúmulo de diversas faixas concêntricos circulares ou oitavadas, com ordens decorativas variadas, criando um movimento sinuoso.
Ao lado dos objetos decorados com motivos da cerâmica nativa, Theodoro Braga apresentou ainda no Salão de 1927 algumas peças com motivos vegetais, mais raros em seu repertório de referências ao universo paraense. Na tradição brasileira de recurso a imagens da flora nativa, como nos móveis de Béranger, na ordem palmiana de Hercule Florence e nas artes aplicadas de Eliseu Visconti, Theodoro Braga desenhou o castiçal “Lírio amazônico”, baseado na figura da Euchoris amazônica, a peça foi realizada em ferro batido, com execução da Escola Profissional de Rio Claro, São Paulo.
Encontramos ainda referência no álbum fotográfico de Peruto a um topete denominado “Yapoana”. Foi “inspirado” na Vitória Régia e com decoração ainda em estilo marajoara, executada pelo Manufatura de Topete Santa Helena, de São Paulo, segundo o risco de Theodoro Braga (3). Braga apresenta ainda um “projeto original para tecelagem em colgaduras” baseado no termo do “mangueira em flor”. A mangueira, originária da Índia e importada pelos portugueses paro o Brasil, adaptou-se muito bem ao clima de Belém, cidade arborizada por milhares delas, que se tornaram um de seus símbolos. A mangueira em flor está impregnado de significados locais (densidade de vegetação, filtro de luz, sombra, fruto, etc), de difícil apreensão para o público do sul do Brasil. Esse tema em Theodoro Braga tem o sentido de uma evocação de uma vivência, diferentemente do programa intelectual da opção pelo estilo marajoara. Finalmente, uma coluna (aparentemente de madeira), denominada “Caraná”, em forma de palmeira foi desenhada por Braga e executada pelo escultor Vicente Larocca, é também apresentada. Com o precedente da origem palmiana de Hercule Florence, o projeto de Theodoro Braga parece indicar um uso arquitetônico não definido nos documentos encontrados, podendo ser uma coluna para arquitetura ou também um balaustre. Se o corpo da coluna parece bem estruturado graficamente na estilização geometrizada de conotação art-déco, com as estrias das raízes e o trançado das folhas caídas, o capitel é mal resolvido com uma indicação simples do desenho estrelado de uma copa de palmeira, sem uma integração estrutural e uma harmonia com o ritmo gráfico do corpo central e base da coluna.
Theodoro Braga, mais amadurecido, realizou uma série de vasos em metal e esmalte, transformando os motivos geométricos da cerâmica marajoara, com suas quebra e irregularidade singelas, em rigoroso estilo art-déco. Desses vasos se conhece pelo menos cinco.
Outro paraense, Manuel Pastana, deixou um corpus de objetos de artes decorativas ainda hoje não estudado. São centenas de aquarelas e guaches com projetos de móveis e objetos (luminárias, bandejas etc), em que ora adota elementos decorativos da cerâmica arqueológica das tribos amazônicas, ora refere-se à flora e à fauna da selva. Existem ainda muitos desenhos de cópia de peças guardadas em coleções de nossos museus antropológicos, como o Museu Goeldi de Belém e o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Pastana deixou ainda inúmeros objetos decorativos em bronze (urnas, vasos, etc), muitos com motivos zoomorfos.
No jornal “Bellas Artes”, de Quirino Campofiorito, Pastana desenvolve algumas ideias no seu artigo “O Despertar da Arte” (nos 43-44, p.3, novembro e dezembro de 1938). “Os indígenas”, escreveu Manuel Pastana, “decoravam os seus instrumentos de guerra e de usos domésticos, dando assim uma prova irrefutável do seu elevado grau de sensibilidade artística, visto que, para a eficiência de um instrumento de guerra, bastaria a sua resistência, (…) houve tribos, como as de Marajó e Santarém, no Pará, que deixaram indelevelmente marcada, na arte escultórica, o adiantamento de suas composições decorativas (…). Aqui no Brasil, infelizmente, do que menos se cuida é da arte decorativa, talvez pela exuberância de motivos aplicáveis a esse gênero”. No entanto, o próprio Quirino Campofiorito mantinha algumas reservas sobre as possibilidades de o estilo marajoara garantir o nascimento de uma “arte brasileira”. Acreditava mais que se pudesse realizar algumas “coisas curiosas”, mas temia que não se ultrapassasse um trabalho de repetição.
No Rio de Janeiro, um grupo formado por Camila Álvares de Azevedo, Maria Francelina B.B. Falcão, Euclides Fonseca e outros, manteve um interesse nas artes decorativas baseadas em motivo da louça marajoara. Mantinham contacto com Manuel Pastana, que à época (meados da década de 30, residia em Belém). Deve-se relembrar que o jornal “Bellas Artes”, editado por um terceiro paraense, Quirino Campofiorito, no período de 1935 a 1940, foi um grande veículo de popularização das ideias sobre uma cerâmica baseada no modelo arqueológico de Marajó.
No início da década de 1940, o casal Quirino e Hilda Campofiorito produziu uma série de objetos, sob a firma de azulejos e vasos em cerâmica vitrificada (5). A técnica empregada por ambos consistia no uso de barro tabatinga escuro coberto por uma massa clara. As figuras eram gravadas, retirando-se a camada, ou desenhando por incisão nela, de modo a que aparecia a base em matéria mais escura. “Às vezes parece até uma xilogravura. Parece-se com as técnicas dos índios, que faziam a peça no barro escuro, pincelavam com barro e depois abriam as imagens”, diz Quirino Campofiorito (6). Os azulejos de Quirino Campofiorito, na sua estilização de cenas de esporte, algumas, e outras lendas amazônicas, guardam uma referência mais direta com as formas art-déco. O casal Campofiorito trabalhou o tema das lendas indígenas brasileiras, notadamente as amazônidas. A principal fonte de referência foi o livro sobre lendas indígenas de Gustavo Barroso. Segundo Quirino Campofiorito, as lendas eram contadas por Barroso “muito dentro da linguagem indígena, com aquela ingenuidade, com aquela deficiência de expressão. Era um pouco falso, mas dava uma certa originalidade para não ficar apenas como uma peça de nossa literatura”.
Durante o modernismo são especialmente os artistas oriundos da própria região amazônica que desenvolverão a ideia de artes decorativas nativistas, especialmente com as figuras dos paraenses Theodoro Braga e Manuel Pastana. A tradição de Belém do “boom” da borracha consolida uma valoração das artes decorativas, envolvendo aspectos tão diversos como os vasos de Gallé e a arquitetura de ferro. Para tais artes, e o gosto que se desenvolveu em Belém em sua “belle époque” de fausto e decadência econômica, que seria base sólida para uma considerável vertente do modernismo numa perspectiva nacional.

PAULO HERKENHOFF (1993)

1 In “Salon” 1927. Álbum de fotografias e anotações manuscritas de autoria de Carlos Peroto, 1927, coleção do autor. Todas as indicações relativas às obras do casal Braga de 1927 são provenientes desse álbum. O autor desconhece se as aludidas peças ainda existem.
2 Designação de diversos espécies de madeira do gênero Aspidosperma, da família dos apocinóceas, muito empregado paro fazer cabo de enxada e de outros ferramentas agrícolas em regiões como São Paulo, Minas Gerais e Goiás.
3 A fotografia legendada por Peroto mostra apenas uma pequena nesga do objeto.
4 Ex-coll Pietro Maria Bardi e Adolpho Leimer, atualmente no MAM-RJ.
5 Segundo Hilda Campofiorito, os trabalhos foram realizados em Niterói, na fábrica de
cerâmica de Edgard Fontes Rei, especializada em fabricar bilhas, talhas e vasos: “Era uma técnica popular, com um certo caráter da cerâmica portuguesa adaptada às circunstâncias do Brasil” diz a artista (Depoimento de Hilda e Quirino Campofiorito ao autor em 12 de agosto de 1993).
6 Ibidem.

A EXPOSIÇÃO DE ISMAEL NERY*

Esses são os mártires porque vão na frente e porque sacrificaram o comodismo de uma glória fácil, a um destino incerto, num mundo desconhecido do estético, onde não sabem se conseguirão alcançar o seu sonho exaltado e novo (AG.)
Não fosse a obra de arte o reflexo da alma do artista, não existia decerto, em todo o universo, coisa alguma que merecesse o religioso guardo dos museus dos centros civilizados, onde atravessam os séculos as obras de nossos antepassados. Tudo seria relegado ao desprezo, ou pelo menos nivelado aos triviais acontecimentos da vida burguesa.
Ismael Nery, o artista patrício, que ora nos visita, é um revolucionário da Arte e do Meio. A sua arte, embora de aspecto sombrio, é expressiva – a preocupação do artista é exclusivamente a expressão.
Que importa, pra si, a beleza das formas, se estas, muitas vezes, são inexpressivas?
Ninguém ao defrontar da secular esfingie, por mais insensível que seja, poderá evitar o invasão no seu íntimo do sentimento do terror, ou pelo menos do profundo respeito que o gigantesco monumento lhe inspira.
Entretanto, as suas formas são rústicas – a sua plástica bárbara. Mas, em todo aquele labirinto de formas há algo misterioso que faz o homem pensar.
A arte de Ismael é também bárbara, para nós, mas nem por isso deixamos de reconhecer o seu valor intrínseco.

MANUEL PASTANA

*Publicado na edição do dia 11 de setembro de 1929, no Jornal Folha do Norte.

Obs.: Este artigo foi recuperado da Internet e reparado a partir da fonte digital online, portanto, pode não estar fiel ao original escrito por Paulo Estellita Herkenhoff Filho.

Fonte: Fundação Rômulo Maiorana.

Sobre o Projeto Laboratório Virtual - FAU ITEC UFPA

Ações integradas de ensino, pesquisa e extensão da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Tecnologia da Universidade Federal do Pará - em atividade desde maio de 2010. Prêmio Prática Inovadora em Gestão Universitária da UFPA em 2012. Corpo editorial responsável pelas publicações: Aristoteles Guilliod, Fernando Marques, Haroldo Baleixe, Igor Pacheco, Jô Bassalo e Márcio Barata. Coordenação do projeto e redação: Haroldo Baleixe.
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