A história do “Domingos Freire”; por José Maria de Castro Abreu Júnior*

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Um observador atento que trafegue pela travessa Barão de Mamoré percebe no muro do Hospital Universitário João de Barros Barreto (HUJBB) duas altas colunas trabalhadas que sustentam um ornamentado portão em ferro fundido onde no alto em um arco vêem-se letras de metal presas com rebites onde lê-se: “Hospital Domingos Freire”. É tudo que resta daquela instituição que durante décadas foi o hospital de isolamento de Belém.
Criado a partir do projeto de lei Nº306 da câmara dos deputados, datado de 21 de maio de 1894, que autorizava a construção de um Hospital para o isolamento dos pacientes portadores de doenças infecto-contagiosas, teve suas obras iniciadas no ano seguinte no governo Lauro Sodré, sobre plano do engenheiro Raimundo Viana e finalizadas somente em dezembro de 1899, no governo Paes de Carvalho, já sobre supervisão do engenheiro Inácio Moura. Teve um custo total de duzentos e cinqüenta contos de réis, sem contar a compra do terreno que pertencia ao médico Américo Marques Santa Rosa.
O edifício era dividido em três corpos: um central onde ficavam os gabinetes dos médicos, os aposentos das irmãs da Santa Casa, que administravam o Hospital, a farmácia e os refeitórios, e dois laterais e iguais com duas grandes enfermarias cada um. Tinha capacidade para 50 leitos, podendo ser aumentado até 60.
Seu primeiro diretor, o médico João Pontes de Carvalho, mesmo destacando a imponência, elegância e solidez da construção teceu pesadas críticas à obra afirmando que pelo tempo gasto na construção e pela soma de dinheiro público dispensado o Hospital ainda estava muito aquém de preencher as expectativas para o qual fora destinado.
Justificava que entre outras coisas que o Hospital, uma cópia de um estabelecimento congênere em Estocolmo, estava erroneamente transplantado para o nosso clima e para o nosso meio, localizado junto a um pântano que contribuía com muitos casos de malária e muito próximo do Hospital de isolamento de varíola, o São Sebastião.
Na verdade o projeto inicial era bem ambicioso e previa, a longo prazo, a construção de vários blocos que iriam compor o Hospital de Isolamento, entre os quais edifícios especiais para Varíola, Febre Amarela, Febre Tifóide, Difteria e Tuberculose. As construções chegariam até o Largo de São Brás.
Como o novo hospital acabou destinado aos pacientes acometidos por Febre Amarela, João Pontes de Carvalho sugeriu que ele recebesse o nome de “Domingos Freire”, em homenagem a Domingos José Freire Junior (1843-1899) médico carioca, professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro de renome internacional no período em virtude de seus trabalhos sobre aquela doença.
O “Domingos Freire” estava pronto, mas não inaugurado, quando um incidente infeliz fez com que fosse aberto às pressas em fins de abril de 1900. Estava de passagem por Belém a “Companhia Lírica Italiana” apresentando a ópera Aída. Logo após as primeiras apresentações os membros da trupe começaram a apresentar os sintomas de febre amarela. O governador Paes de Carvalho ordenou que o Hospital fosse inaugurado e os artistas fossem ali internados. De nada adiantaram os cuidados, a companhia foi praticamente dizimada e artistas de renome internacional perderam a vida em Belém. Outro acontecimento trágico de repercussão internacional e que marcaria a história do Hospital de Isolamento ocorreu logo em seguida com a chegada de uma expedição da “Escola de Medicina Tropical e Parasitologia de Liverpool”. A comitiva era composta por dois jovens médicos Walter Mayers e H.C. Durham, cujo objetivo era estudar a transmissão da febre amarela. O governador providenciou em um anexo ainda não concluído do “Domingos Freire” espaço e equipamento para a criação de um pequeno laboratório de pesquisa para os ingleses.
Após cinco meses de trabalho, ambos foram acometidos pela doença que estudavam, sendo que Mayers teve menos sorte, vindo a falecer naquele hospital em 20 de janeiro de 1901. Paradoxalmente graças a estes dois incidentes Belém ganhava, juntamente com seu primeiro Hospital de Isolamento, a fama internacional de cidade insalubre.
As taxas de mortalidade do hospital eram altas, chegando no seu primeiro ano de funcionamento a 37%, número que gerou críticas da imprensa leiga. Pontes de Carvalho defendia-se dizendo que além da gravidade da doença muitos dos seus colegas “…só se lembram do Hospital Domingos Freire quando vêem seus clientes sem mais esperanças de vida”.
Como a febre amarela estava longe de ser a única endemia no Pará, o hospital começou a atender diferentes clientelas variando com o sabor das epidemias e surtos que acometeram o estado na primeira década do século XX, sendo ali internados casos de tifo, impaludismo, peste bubônica, tuberculose e mesmo varíola quando o “São Sebastião” não era suficiente.
Independentemente da doença que fosse os pacientes chegavam ao “Domingos Freire” muitas vezes em estado grave, a ponto de em 1905, em um período que este se voltou para a tuberculose, o governador de então, Augusto Montenegro, declarou que os pacientes que ali se recolhiam “… não são mais doentes, são condenados a morte certa, que vem encontrar na caridade do governo um simples alivio para os seus últimos dias”.
Alguns anos depois, já no governo João Coelho, com o recrudescimento da febre amarela o hospital retornava a sua antiga função. Graças a vitoriosa campanha encabeçada por Oswaldo Cruz a febre amarela urbana seria erradicada em Belém em outubro de 1911. No ano seguinte, um pavilhão do “Domingos Freire” que servia de moradia para as irmãs foi adaptado para isolar os pacientes com febre amarela que desembarcavam em Belém recebendo o nome de “Pavilhão Oswaldo Cruz”. Em 1914 o hospital, já sob a direção do médico Américo Campos, foi readaptado para o isolamento de pacientes tuberculosos permanecendo nesta função até seu desaparecimento.
Na década de 40, enquanto aguardava a eterna construção do HUJBB, o “Domingos Freire” já estava mais do que insuficiente, sendo descrito pelo jornal “Folha Vespertina” como um hospital velho e inadequado, que estava longe de satisfazer as necessidades de um hospital para tuberculosos, onde não havia arejamento. Faltavam alimentos e medicamentos, com material cirúrgico obsoleto, sem ter sequer sala de operações e o único aparelho de pneumotórax ali instalado (tratamento em voga na época) estava colocado em um antigo quarto de um pensionista na falta de local adequado.
Com o início do funcionamento do HUJBB em 15 de agosto de 1959, recebendo 16 pacientes provenientes do “Domingos Freire”, uma nova instituição nascia, enquanto outra dava os últimos passos até sua extinção em 1964. O evento não marcou apenas uma simples troca de hospitais, mas o fim de uma era de terapêutica incerta em que a única forma de evitar a disseminação de certas doenças infecto-contagiosas era a segregação absoluta dos pacientes acometidos com seu total isolamento do convívio social que ia muitas vezes até à morte.

Referências:
Revista Pará-Médico nº 1. Novembro de 1900.
Revista Pará-Médico nº 2. Dezembro de 1900.
Revista Pará-Médico nº 6. Abril de 1901.
AMARAL COSTA, Carlos A. Oswaldo Cruz e
a Febre Amarela no Pará. Conselho Estadual de
Cultura. Grafisa. 1972.
MONTENEGRO, Augusto. Mensagem dirigida
ao congresso legislativo do Pará pelo governador
Augusto Montenegro. Imprensa Oficial. 1905.
Jornal “Folha Vespertina” de 7 de outubro de 1947.

*Médico formado pela Universidade Federal
do Pará (UFPA). Patologista pela Universidade
Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).
Especialista em Patologia pela AMB.

Texto origialmente publicado no jornal CRM-PA ANO XII Nº76 / janeiro a fevereiro de 2009.

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