“Medicina, como eu disse, começa pelo ato de contar histórias.
Pacientes contam histórias para descrever doenças;
médicos contam histórias para compreendê-las.”
Siddartha Mukherjee, médico e escritor, em: “O imperador de todos os males (2011)
Passei um lustro no Acre, entre os rios Juruá e Purus. Em batidas de remo dista dias-luz da esquina do médio Amazonas. Tinha entre oito e 12 anos, sem direito a televisão. Era cidade pacata, ideal para se viver a infância de rua, de praça e de juntar manga do chão. A luz findava dez, depois era pira-esconde ou 31 alerta.
Certa manhã, ao ver uma pequena fila na vizinhança, arrisquei adentrar para bisbilhotar. Bem se sabe: criança fura fila. Num dos cubículos da tosca casa de madeira havia uma baladeira atada com uma velha grotesca. Deitada com as pernas para fora, pés rés ao chão, ela estava arrumada num vestido fino, azul claro, floral; tinha a pele morena e o rosto engelhado pelo tempo, que bem lembra aquela pintura do renascentista Quinten Metsys (“Uma velha grotesca”). Ela urrava de dor. Envolta, umas cinco pessoas em revezamento para fazer o humano carrossel – era o que cabia naquele cômodo. Todos a acalentavam com olhos piedosos e gestos de caridade.
Eu tentava entender o cenário, mas a dor visceral uníssona zombava da minha ignorância. Franzino, permaneci em pé, descalço, encostando o ombro na porta do quarto totalmente aberto. Assistia àquela imagem e ouvia impotente aquele pesar: nada sabem fazer, nada podem fazer. Rostos mergulhados no vazio absoluto; silêncio enclausurado na fé. E eu, acabrunhado, querendo conhecer a verdade com os pés descalços da meninice.
Deu-se então um cochicho: “fumava porronca e agora não tem força para sair da rede. Já cuspiu sangue, tem fôlego curto, pele fria e úmida e toda dor do mundo. Não deve durar muito”.
Em minha puída lembrança a casa não tinha mais que cem metros da nossa e, quando minha mãe soube que eu estava lá, por fofocaria da irmã, mandou um “passa-pra-dentro”, além de esculachos. Dizia ser doença de pegar.
Não durou muito. O cortejo se deu na mesma rede, como o nativo faz: içada num pau estirado de ombro a ombro de uns poucos, entre os que restaram daquela sessão de oração à finitude. Rumaram pro cemitério, que ficava além da pista de pouso, num trecho de areia margeado por capim e mato seco. Entoavam ladainhas. Enterraram-na sem atestado de óbito, pois não havia doutor na cidade. Acompanhei o cortejo na mutuca, sem minha mãe saber.
Esta cena, que invadiu minha infância feito procissão de velas, perfila até hoje num canto morno da minha memória. Vez por outra, sem quê nem pra quê, a velha, feito vela, se acende no meio da minha jornada soturna com o Câncer. Digladio com esse fantasma sem máscara e DNA.
Talvez a causa mortis fosse Cancro, talvez Tísica. Sucede que este quadro ficou pintado na minha janela durante longos anos e só agora varro o pó do esquecimento.
Diz-se que se abandona a infância quando se vê a fome ou a morte. Aquele interior me estampou a morte… Foi a pré-coisa dentro de mim.
Roger Normando é professor da Faculdade de Medicina e colaborador do BF.
Publicado originalmente no Flanar.