Arquiteto, designer & propina; por Walcyr Carrasco*

Há anos estou reformando uma casa em São Paulo. Quem já entrou numa reforma sabe que há data para começar, mas jamais para terminar. É uma construção antiga, com vitrais e um belo jardim. Quando comprei o imóvel, pensei: “Esta é a casa de um escritor”. Penso que, quando morar nela, serei mais feliz.
Reformar imóveis tem sido uma atividade constante na minha vida. Motivo pelo qual há anos peguei cisma de arquitetos e, faz pouco, demiti o último. Um profissional é responsável pelas plantas. Para tocar a obra, o engenheiro que se tornou também meu amigo, Marcelo. Comprei o apartamento em que vivo na planta. Chamei uma profissional famosa para a finalização e o interior. Expliquei que não podia gastar muito. Mostrei meus móveis.
– Vou aproveitar tudo! – disse ela.
Foram surgindo sugestões: poltroninhas, um móvel que ela mesma desenhou… Cada vez que eu dizia não, ela me lançava um olhar penetrante. Arquitetos, designers de interiores ou, como diziam antes, decoradores, desenvolvem um olhar especial que parece dizer: “Como você é brega!”. No susto fui topando. Ainda implorei:
– Adoro aquela mesinha. Ela não pode faltar.
Na hora de montar a sala, cadê lugar para ela? Pior: o ar-condicionado não funcionava. A arquiteta afirmou: o ar fora testado, sem problemas. Mas algo em minha memória se remexeu. Lembrei-me! Durante a obra, a construtora me enviara os controles. Estavam no cofre intactos. A arquiteta mudara os aparelhos de lugar, e os canos estavam com cimento. Liguei:
– Como vocês testaram, se os controles estão comigo?
Silêncio abissal.
No final, quando eu reclamava de algo, ela respondia:
– Mas isso não é minha cara…
– Quem vai morar aqui sou eu!
De novo, o olhar de desprezo absoluto, como se eu fosse um selvagem defendendo minha caverna.
Não sou a única vítima. Um amigo assustou-se quando sua arquiteta trouxe uma mesinha constituída por duas tábuas com pregos aparentes, na faixa dos US$ 10 mil. Ela praticamente retrucou que ele era um poço de mau gosto. E pão-duro.
Arquitetos gostam da frase:
– Quando você receber alguém…
Essa é a razão pela qual casas feitas por designers e arquitetos de interiores assemelham-se a estandes de decoração. São para ser vistas. Não vividas. Sinceramente, prefiro entrar numa sala e ver sapatos jogados num canto à beleza asséptica, que me deixa tão à vontade como um centro cirúrgico.
A remuneração dos arquitetos e designers costuma ser na base de uma percentagem do que é gasto, entre 10% e 20%. Ou seja: quanto mais faz o cliente gastar, mais ele ganha. Vejo aí um conflito de interesses. Outros profissionais cobram percentagens, como os advogados. Mas é justo, porque ganham em cima do que conseguem para um cliente numa causa, ou sobre aquilo que o cliente deixa de pagar em outra. Muitos designers e arquitetos tornam-se vendedores de luxo. Querem que a gente jogue tudo fora e bote novo. Quanto mais, melhor.
Há coisa bem pior. A famigerada RT – Reserva Técnica. É a percentagem que a loja dá diretamente ao designer ou arquiteto sobre quanto o cliente gastou. Em algumas, começa com 10%. Noutras, o céu é o limite. Há uma romaria às lojas mais caras, onde a RT costuma ser maior.
Só para dar uma ideia: pedi a três empresas respeitadas que orçassem armários e cozinha. Depois, negociei pessoalmente:
– Não há arquiteto, nem vocês terão de pagar RT. Quero desconto.
Todas começaram oferecendo 40%! Suponho que era a margem da RT. Soube de casos, à boca pequena, entre os mais estrelados, em que a RT é de 100%. Sinceramente, acho o nome RT pouco apropriado. Melhor seria propina. Do que se trata a tal RT, senão de uma propina paga pelo fornecedor ao profissional?
Nem todos os profissionais agem assim. Mas a prática tornou-se comum. Pior: admitida. De fornecedores de vasos sanitários a galerias de arte, todo mundo dá propina. Está na hora de moralizar a relação entre cliente, designer e arquiteto. Seria preciso proibir a RT, com penalidades. E acabar com a cobrança por percentagem. Na obra e na decoração, o preço deveria ser por metro quadrado, como ao fazer a planta.
Desde que fiquei sem arquiteto, estou feliz. Gasto bem menos na obra. Vou fazer minha casa do meu jeito. Não quero viver numa vitrine. Quero fotos de família na sala. E que os amigos sintam-se à vontade para ir à geladeira pegar um refrigerante. Minha casa é meu lar, e só quero me sentir bem.

*Walcyr Carrasco é jornalista, autor de livros, peças teatrais e novelas de televisão.

Fonte: Revista Época.
Colaboração: Professor José Maria Coelho Bassalo.

Sobre o Projeto Laboratório Virtual - FAU ITEC UFPA

Ações integradas de ensino, pesquisa e extensão da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Tecnologia da Universidade Federal do Pará - em atividade desde maio de 2010. Prêmio Prática Inovadora em Gestão Universitária da UFPA em 2012. Corpo editorial responsável pelas publicações: Aristoteles Guilliod, Fernando Marques, Haroldo Baleixe, Igor Pacheco, Jô Bassalo e Márcio Barata. Coordenação do projeto e redação: Haroldo Baleixe. Membros da extensão do ITEC vinculada à divulgação da produção de Representação e Expressão: Dina Oliveira e Jorge Eiró.
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5 respostas para Arquiteto, designer & propina; por Walcyr Carrasco*

  1. Bassalo disse:

    Apesar das exageradas generalizações, o texto do Walcyr ajuda a perceber os males à categoria dos arquitetos causados pela prática do recebimento da tal reserva técnica (RT), novo nome eufemístico que a desfaçatez deu à velha e conhecida comissão.
    Para quem não sabe ou diz não saber, a RT é uma sobretaxa no preço de produtos/serviços, que, custeada e ignorada pelos clientes compradores/contratantes, é repassada diretamente por fornecedores a arquitetos como pagamento pela intermediação e/ou sugestão do negócio.
    Operação ilícita, portanto, em minha opinião.

  2. Aline disse:

    Sou a favor da Reserva técnica, pois é uma prática de mercado e não de profissionais, vc está representando uma marca, um fornecedor e um produto, está se responsabilizando por ele é o seu nome que está na reta, e os percentuais são de 5 a 10%, esses percentuais que ele descreve é coisa de novela mesmo.Por acaso vcs acham que ele não recebe nada por fazer as propagandas de marca nas novelinhas???Vcs acham q médicos e dentistas não fazem parceria com laboratórios e fornecedores???Tanta hipocrisia me da nojo…Lamento informar, isso é mercado…isso é Brasil, e com certeza se não fosse, o arquiteto seria melhor valorizado…

    • Célia disse:

      isso mesmo Aline, nós procuramos lojas, produtos, mão de obra e ainda não podemos ganhar nada com isso, incrível…. esse cara me dá nojo!!!!!

  3. Júlio disse:

    Concordo com a Aline.
    Esses RTs que ele citou estão absurdos. É 10% e é CHORANDO!
    Se não existisse o RT, pode ter certeza que o projeto arquitetônico iria ser MUITO mais caro. Por que muitas vezes o projeto em si é quase de graça.
    Tem muita gente ignorante que pensa: ”Ah, mais é só um desenhozinho…”
    É uma faculdade difícil, cheia de responsabilidades…
    Boa sorte Walcyr, cuidado pra casa não cair, fazendo obra sem arquiteto!
    Acredito eu que ele teve uma experiência muito ruim com essa profissional que na certa, não retrata a realidade dos profissionais.
    Médico ganha, dentista ganha…E o cara vem comparar com advogados?
    Meu amigo, tempo é dinheiro! Propriedade intelectual, tempo, etc…
    Se ele conseguiu um desconto de 40% porcento, foi por ser o Walcyr Carrasco e não por qualquer outra coisa…

  4. Sandro disse:

    WALCYR!!!…deixa de ser CARRASCO!!!!…………………..

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