Em 1974, Jorge Bodansky, Orlando Senna e Wolf Gauer realizaram um filme que se tornaria uma pequena obra-prima do cinema brasileiro: Iracema, uma transa amazônica. Em contraste com a propaganda oficial da ditadura, que alardeava um país em expansão com a construção da Transamazônica, uma câmera sensível revelava os problemas que essa estrada traria para a região: desmatamento, queimadas, trabalho escravo, prostituição infantil. Misturando documentário e ficção, o filme narra a história da jovem Iracema e do motorista Tião Brasil Grande, emblemática da realidade brasileira. Iracema permaneceu proibido pela censura durante seis anos. Nesse período, ganhou prêmios em festivais internacionais e, em 1980, quando liberado, foi o grande vencedor do Festival de Brasília.
FAU
Análise – A (re)invenção de Iracema e a crítica da brasilidade; por César Henrique Guazzelli e Sousa
A representação da miséria e do subdesenvolvimento é muito cara ao cinema brasileiro. Grande eixo da produção cinematográfica nacional, essa abordagem encontra enorme diferencial em Iracema – Uma Transa Amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna.
Realizado em 1974 e liberado para exibição no Brasil somente em 1979, o filme, utiliza a realidade social da Transamazônica como metáfora e como aporte para a busca da brasilidade, elemento que perpassou toda a produção de José de Alencar, autor da obra original Iracema, na qual o filme homônimo é livremente inspirado. O que há de mais prodigioso em Iracema é sua forma de acessar a realidade narrada. Despreocupado em se engessar genericamente como documentário ou ficção, lança mão de elementos diversos na construção da narrativa, como entrevistas, revelação do aparato e o uso de atores não profissionais – com exceção de Tião, interpretado por Paulo César Pereio – o que muito lhe acrescenta na representação da realidade visada.
O uso de um título de José de Alencar como pano de fundo para Iracema é sintomático. O autor foi o grande representante do romance romântico nacionalista brasileiro, esforçando-se durante toda a sua vasta obra para produzir um nacionalismo genuinamente brasileiro, desvinculado das construções de memória nacional e representações do passado europeizadas. Nesse sentido, seus romances indigenistas, O Guarani, Iracema e Macunaíma, representam uma tentativa de associar o passado brasileiro à imagem do índio, este colocado como uma figura guerreira, honrada, brava, valente, bela. A idealização do índio como a personificação do brasileiro e do passado pretensamente glorioso do país foi posteriormente contestada por Macunaíma, de Mário de Andrade, um homem torto, avesso, o anti-herói por excelência.
Bodanzky e Senna parecem não se adequar nem a um lado, nem ao outro. Longe de absorverem a Iracema idealizada, bela e pura de Alencar, eles a contestam. Contudo, não se deslocam para o caminho do anti-heroísmo, da construção metaforizada de uma figura tão absurda como Iracema, mas colocada no outro extremo dos valores morais, como é o caso de Macunaíma. Antes de criar uma imagem do Brasil, de forjar uma brasilidade da qual somos carentes, eles buscam encontrar o verdadeiro significado do ser brasileiro. Para isso, aludem à Transamazônica.
A Iracema de Bodanzky e Senna se distingue notoriamente da de Alencar. Baixinha, de voz estridente, troncuda e de nariz grosso, não faz menção alguma à doçura da aparência de sua correspondente alencariana. Também suas atitudes não correspondem em nada à obra original. No filme, Iracema vai a Belém com a família pagar uma promessa no Círio de Nazaré. Na cidade, acaba caindo na prostituição. Fala muitos palavrões, hesita em ajudar sua amiga quando são largadas no meio da estrada, sempre busca tirar vantagem das situações. Em um cabaré, conhece Tião, o homem branco. A relação dos dois ocorre por um jogo de interesses. Iracema, seduzida por suas amigas a ir para São Paulo, vê em Tião a oportunidade perfeita para abandonar o Norte. Tião, caminhoneiro e conquistador, vê Iracema como mais uma conquista, mais um adesivo no vidro de seu caminhão. Não há lugar para o amor romântico na obra de Bodanzky e Senna, o homem age por necessidade e interesse, não por amor a um ente.
A representação da Transamazônica como espelho do ser brasileiro incomoda. Região pauperizada, suja, claramente espantada com aparato de filmagem – pessoas no fundo dos enquadramentos olhando para a câmera são constantes – é colocada como um apêndice da modernidade, uma paródia de si mesma. Iracema, vestida com um short da coca-cola, desmonta completamente a idealização do índio como afirmação do brasileirismo. O índio não quer ser brasileiro, o índio não quer ser índio. Iracema, como ela mesma diz, é branca. Também a sensualidade, a malandragem, a amistosidade, a memória curta (Iracema, ao ver novamente Tião após ser abandonada, fica feliz) a capacidade para lidar com intempéries – o estupro de Iracema não serve como pretexto para a narração de um drama particular na vida da moça – o jeitinho aliado ao trabalho duro: tudo isso é visto como O Brasil.
A manutenção do Brasil como país subdesenvolvido, como eterna promessa, também é sempre aludida. Seja na promessa de vida melhor para Iracema e sua colega de prostituição, seja no vislumbre do ‘’potencial econômico’’ da Amazônia, seja na eterna dívida de Tião com o financiamento de seu caminhão, o Brasil sempre acredita no futuro – e o futuro sempre lhe vira as costas.
A confusão criada entre as personalidades de Tião e Pereio traz um elemento interessante à narrativa. Nunca se sabe se ele está interpretando ou agindo como o ator. Nas entrevistas feitas com os madeireiros, essa faceta do dualismo personagem/ator fica clara: não se sabe quem pergunta. Com Iracema, a reação é a mesma. Sua atuação flui de forma tão natural que parece não haver atuação, de fato. Esse elemento só pode ser extraído da narrativa pelo uso de uma atriz não profissional, pobre e vinculada visceralmente à realidade abordada. Isso coloca em questão outro elemento: onde se coloca o limite entre ator e personagem. É precisamente aqui que reside a inovação de Iracema – Uma Transa Amazônica. O jogo com os limites entre ficção e documentário já não é novidade. Contudo, ao transportar essa incógnita para elementos subjetivos – os atores – lançando questões sobre o limite entre atuação e revelação do sujeito atuante, abre um novo e interessante leque de possibilidades.
Fonte: SOArtigos.
Bom dia! Você é o CESAR HENRIQUE GUAZZELLI E SOUSA que foi classificado no concurso do MPU? É que eu estou atrás dos Termos de Desistência do MPU e gostaria de uma posição sua se irá ou não assumir ao cargo de Técnico Administrativo/DF ??? Aguardo a sua resposta o mais rápido possível, pois estamos no limite da validade do concurso e preciso muito ser nomeado. Desculpe o incômodo. Abraço
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