Paula Teresa da Silva (1701-1768), uma garota rebelde e namoradeira, foi internada pelo pai no Mosteiro de Odivelas, a 15 quilômetros de Lisboa, onde se instalou no século 13 a Ordem das Bernardas de Cister. O pai não conseguia controlar o assanhamento da filha, nem tinha dinheiro para dar-lhe uma boa educação. Paula, quando fez os votos de noviça, aos 16 anos de idade, já era amante do conde de Vimioso (1679-1749). Outros pais enviaram filhas para lá, atormentados pelos mesmos problemas. Apesar da grande tradição, o Mosteiro de Odivelas deixara de ser um modelo de virtudes. Mas a licenciosidade de noviças e freiras se repetia em diferentes endereços. Rendia às religiosas pecadoras tenças (pensões periódicas), bens e privilégios. Na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, há uma relação de 20 freiras condenadas por ‘delitos amorosos’ na primeira metade do século 18, no tempo de d. João V (1689-1750), o avô de d. João VI e bisavô de d. Pedro I, imperador do Brasil. A permissividade foi explorada pelo escritor Camilo Castelo Branco na novela A Caveira da Mártir, de 1875. Alvos de mexericos picantes, os mosteiros e conventos femininos atraíram homens com intenções escusas. Apareciam sob o pretexto de assistir a seus festejos, sobretudo os animados outeiros, reuniões culturais em que versejadores famosos glosavam para a platéia os motes dados pelas freiras. ‘Então, os vates desferiam rajadas poéticas, enxameando os mosteiros de paixões’, descreve César Príncipe, no livro Ementas do Paraíso (Campo das Letras, Porto, 2005). ‘As rimas dos galãs eram pagas com vinhos & licores, doces & olhares concupiscentes. Amiúde as irmãs se deixavam enlear, perdendo a compostura, entregando-se a desvarios pelas muitas penumbras conventuais.’
Odivelas também se destacava pela arte culinária. Para romper a monotonia diária, noviças e freiras entregavam-se à doçaria. Preparavam biscoitos, bolinhos, bolos, conservas, empadas, pães-de-ló, pudins, queijadas, tigeladas, toucinhos-do-céu e marmeladas. Nas refeições, saboreavam lebre assada, peru corado, coelho real e empada de tordos (pássaro europeu). O livro de receitas da última freira de Odivelas (Editorial Verbo, Lisboa, 1999), organizado por Maria Isabel de Vasconcelos Cabral, revelou essas fórmulas deliciosas. A religiosa mencionada faleceu em 1909, deixando um precioso caderno de cozinha. Chamava-se Carolina Augusta de Castro e Silva. Notabilizou-se pela fé e caridade. Depurados os escândalos do passado, o mosteiro voltara a ser um respeitado epicentro de espiritualidade.
A noviça Paula virou freira em 1718 e, nesse mesmo ano, na festa do Desagravo do Santíssimo Sacramento, realizada a 11 de maio, ou na tourada comemorativa ao casamento de um nobre, a 23 de outubro, conheceu o rei d. João V. Foi amor à primeira vista. Apaixonado, o soberano absolutista que governou Portugal por 44 anos, em um dos períodos mais ricos do país, graças ao ouro e às pedras preciosas chegadas do Brasil, transformou-a em sua favorita. Antes, porém, entendeu-se com o conde de Vimioso. A freira desviada foi descrita como ‘uma rapariga bonita, elegante e vistosa’. O rei passou a visitá-la quase todas as noites. Como ele também revelava enorme apetite à mesa, madre Paula – título com o qual ela passou à história – recebia o amante com docinhos, especialmente com os ‘quadrados de pudim’ de sua autoria. Diz-se que até chegaram a prepará-los juntos. Levavam marmelo e apresentavam consistência delicada, porém pastosa. Deveriam ter outro nome. Não eram quadrados de pudim, mas de marmelada branca.
Apesar de governar com mão de ferro e jamais ter convocado as Cortes de Lisboa, d. João V recebeu o cognome de o Magnífico e também de o Rei-Sol Português, pois admirava o rei Luís XIV da França e o imitava nas roupas e luxos. Entretanto, alguns biógrafos preferem denominá-lo o Freirático, devido à fixação nas freiras. Em 1720, teve um filho com madre Paula, d. José. Mas já tinha outro, d. Gaspar, nascido em 1716, com uma colega dela, Madalena Máxima de Miranda; e um mais velho, vindo ao mundo em 1704, d. Antônio, com uma religiosa francesa de nome ignorado. Os três ficaram conhecidos como ‘os meninos de Palhavã’, por serem criados no palácio dos marqueses do Louriçal, em Palhavã, nos arredores de Lisboa. Deram-se bem na vida: d. José exerceu o cargo de inquisidor-mor; d. Gaspar foi arcebispo primaz de Braga; d. Antônio veio a ser cavaleiro da Ordem de Cristo. Além das freiras, d. João V teve amantes leigas e uma filha, d. Maria Rita, com d. Luísa Clara de Portugal, mulher de d. Jorge de Menezes. O relacionamento do rei com madre Paula durou anos. Ela ganhou tenças e uma torre para morar, demolida em 1948 pelo risco de desabar e comprometer o vizinho mosteiro. O fogoso soberano, porém, nunca abandonou a esposa, d. Maria de Áustria, que lhe deu seis filhos. Um deles, d. José I, sucedeu-o no trono. Sua vida libertina escandalizava o país. Mas ninguém se atrevia a criticá-lo. Era tão grande o desregramento que d. Feliciana de Milão, uma abadessa de Odivelas, irritada com o fato de as freiras não se levantarem quando ela passava, conforme a regra, arremessou-lhes um de seus famosos ditos: ‘Não se levanta de graça quem se deita por dinheiro.’
Secando no sol
Marmelada conventual
2 quilos
3 horas
Ingredientes
2 kg de marmelo
Açúcar quanto baste
Preparo
Cozinhe os marmelos, escorra-os, retire a casca e as sementes. Passe-os em uma peneira, obtendo uma massa. Pese-a. Para cada quilo de massa utilize 11/2 quilo de açúcar. Em uma panela de fundo grosso, faça uma calda em ponto de quebrar. Fora do fogo, adicione a massa de marmelo à calda, mexendo para os ingredientes ficarem bem dissolvidos. Retorne ao fogo (brando), sem parar de mexer, para não grudar. Assim que aparecer o fundo da panela, retire do fogo, mexa um pouco mais e despeje em forminhas pequenas. Cubra as forminhas com filó e leve-as ao sol forte por 2 ou 3 dias, para secarem. Retire a marmelada das forminhas e leve-as mais uma vez ao sol, até secarem do outro lado.
Fonte: ESTADÃO.COM.BR de 30/NOV/2008.
A imagem-link ilustra a postagem do BF, não a publicação citada.
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Outros docinhos portugueses alusivos ao período freirático: barriguinha de freira, beijos de freira, pescoço de freira, papo de anjo…