Na tarde de 22 de outubro de 1962 (dia do Recírio de Nazaré), no Cartório Chermont, Alcyr Boris de Souza Meira, um jovem de 28 anos com seis de formado em engenharia civil, assinava, junto com seu sócio, Geneciano Fernandes Luz, a escritura pública da compra de uma grande área abandonada e insalubre às proximidades da igreja e largo de Nazaré.
O terreno, com antigas edificações remanescentes em ruínas, media cerca de 40 mil metros quadrados, possuindo duas frentes: uma à avenida Independência (hoje Magalhães Barata) e a outra à Gentil Bitencurt.
O plano de Boris, traduzido em plantas e posteriormente implementado, era retificar o lugar de acentuado declive na direção da Gentil Bitencourt, drená-lo, arruá-lo com três vias longitudinais e duas transversais asfaltadas (todas de dois fluxos) e loteá-lo em 149 unidades à habitação; a infraestrutura de eletricidade, água e esgotamento garantiriam, como atrativo aos compradores, imediata construção de residências no momento da entrega do Jardim que possuiria, em sua rotunda — central —, um monumento à Independência do Brasil desenhado pelo engenheiro-artista:
Planta do Jardim Independência cedida à fotografia por Alcy Meira (ampliável)
Alcyr comprara aquele lugar, engessado por questões legais, da Companhia Cervejaria Brahma Sociedade Anônima, sediada na Guanabara (Rio de Janeiro), com a ajuda financeira, jurídica e política de seu pai, o advogado e interventor federal no Estado do Pará em 1946, Otávio Augusto de Bastos Meira, que mantinha estritas relações de amizade e profissional com outro advogado, Eurico Paulo Valle* — residente e domiciliado no Rio de Janeiro —, filho do último governador do Pará antes da Revolução de 1930: Eurico de Freitas Valle [e dona Lolota (Carlota da Fonseca Valle)].
O escritório de Eurico Paulo Valle permutava habitualmente causas interestaduais com o (escritório) de Otávio Meira e era interesse de Paulo desfazer-se daquele patrimônio infrutífero, vulnerável à desapropriação pelo aparente descaso da Sociedade Anônima carioca proprietária, tanto na condição de jurista, quanto de acionista da Companhia Cervejaria Brahma; desse modo, Otávio embarcou ao Rio de Janeiro às articulações possíveis com Paulo.
O legislativo estadual, com a aquiescência do governador Aurélio do Carmo, desobrigou a Brahma de construir uma fábrica de cerveja como estabeleceu o Decreto de 1947 assinado pelo governador Moura Carvalho; de todo modo, como destaca A Província do Pará em sua Crônica da Cidade (o9NOV1962): É que, embora presa a uma cláusula de obrigatoriedade de construir, ali, uma Fábrica de Cerveja, a Brahma não o poderia fazer exatamente por força de uma outra disposição igualmente respeitável, que considerando a zona residencial, não permitia, nem permite a instalação, ali, de qualquer indústria.
Na contraposição o Diário de Notícias do Rio de Janeiro de 02SET1964, quase dois anos após a negociação firmada, faz apelo ao general Bandeira Coelho, responsável pela instalação de inquéritos policiais militares no Pará pós Golpe de 1964, para investigar essa transação indecorosa e punir os culpados.
Em conversas com este editor Alcyr Meira mencionou algumas ocorrências relativas à implementação de seu projeto em área de interesse à arqueologia da arquitetura, uma vez que o lugar, sabidamente, tem resquícios, em seus estratos, da Fábrica de Cerveja Paraense Sociedade Anônima e, certamente, de um pedaço, destinado ao divertimento público entre 1871 e 1874, da quinta denominada Jardim Mithologico que também compreendia, em certa distância no rumo do Marco da Légua, o atual Parque Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi.
Sobre a demolição do que restara do parque industrial da Fábrica de Cerveja Paraense que demorou mais de cinco anos para ser concluído (de 1900 a 1905) com planejamento e assessoria possivelmente do engenheiro industrial espanhol Claudio Solanes, Alcyr disse que houve a necessidade de muitos quilos de dinamite para pô-lo no chão, pois a estrutura de alvenaria possuía paredes com 80 centímetro a um metro de espessura; havia ali grandes blocos de concreto equivalentes ao volume de um ônibus para suportar o pesado maquinário da cervejaria (caldeiras, tonéis, geradores, etc.) que, pela impossibilidade de removê-los, beneficiaram alguns lotes como fundações às casas.
Boris também lembrou que a chaminé da indústria ainda estava de pé, bem como o Cinema Popular que ficava na hoje alameda Paulo Maranhão com a Magalhães Barata, onde posteriormente a construtora Freire Mello levantou o edifício Rainha Elizabeth, vizinho ao Banna, este, projeto de Alcyr, executado em 1963; ambos os prédios dentro do Independência.
Dados de investigações já publicadas neste site somados aos que revelaremos na sequência nos fazem crer que os blocos-ônibus enterrados no conjunto se situem por trás do Banna, ou mesmo em porções da alameda José de Almeida Facióla**; todavia, faz-se necessário que o próprio Boris trace, sobre sua prancha, o layout da memória do que ele viu das sobras da Fábrica de Cerveja Paraense.
Alcyr insistiu que os nomes dados às vias do Jardim Independência, em respeito à história, homenageiam diretores da antiga Fábrica de Cerveja Paraense; só confirmamos um, o do engenheiro Lúcio de Freitas Amaral, falecido aos 55 anos em 17 de novembro de 1914, mas permanecemos na busca dos demais.
*Eurico Paulo Valle e sua esposa Liselotte Kostenbader Valle tiveram os filho Marcos e Paulo Sergio Kostenbader Valle, músicos de renome internacional.
**José de Almeida Facióla era irmão de Antonio de Almeida Facióla, este comprovadamente diretor da F. C. P. S/A até sua morte em 1936 — em 1939 a indústria foi liquidada, em 1943 desapropriada por Magalhães Barata e em 1947 vendida por decreto de Moura Carvalho à Brahma; sobre Paulo Maranhão nada foi encontrado, até o momento, relacionando-o à cervejaria.
Fontes fora do texto: A Província do Pará OUT/NOV de 1962.
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Excelente matéria, sóbria e de fácil leitura e compreensão de duas visões do “causo”.